CAIAFA, Janice. O movimento hardcore. In: CAIAFA, Janice. Movimento punk na cidade: a invasão dos bandos sub. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
O mínimo punk aqui é quase nada: o instrumento é o rangido, o vocal é o grito, cada música são segundos. É não tocar, não cantar: anti-música. Só o atrito.
Embora bem defmido enquanto som, o punk pode ser trabalhado por desvios (em ângulos sempre agudos de, por exemplo, cinco graus), pode ser aproveitado por outros estilos de som que o transformam, pode ser assumido por uma banda como "influência" e pode ser visto no panorama do rock, mesmo que seja para ele o transtorno e a subversão. Mas não existe transição possível do hard-core. Ele não passa do que é e não serve para outra coisa senão para si mesmo. Ele não pode ser convertido ou adaptado porque o que usa para se fazer é tão horrível que inassimilável (como a abominação da suástica). Para os conversores não há ponto de inserção num corpo tão áspero (o grito, a exasperação, o barulho). Os centros de poder atêm-se aos impasses, engrossam os coágulos dos fluxos, transferem-nos para sua zona de potência e lá os reverberam: as mídias tomam os braceletes no que eles podem ter de pulseira, o negro no que ele pode ser elegante, o cabelo arrepiado no que ele pode compor um penteado (o que portanto já não é mais o punk), e os reproduzem para quem quiser comprar essa cópia de si. Do hard-core não há o que aproveitar, não hácomo domesticar tanto atrito. O perigo para o hard-core enquanto núcleo de resistência é menos ser absorvido do que provocar sua própria destruição. Porque nessa relação variável que a máquina-de-guerra tem com a guerra, pode-se dizer que ele está muito próximo de sua abolição. É mais fácil ele morrer por si mesmo, pelo extremo da linha de fuga. Quando ela vinga por um processo por demais violento, por uma desterritorialização "à la sauvage", o deslocamento abrupto é para ela mortal. O hard-core é como a suástica: sua violência é o que o toma inassimilável e portanto o salva e ao mesmo tempo o aproxima da absoluta autodestruição.
Um pouco mais e é o fim (um fim que vem pela própria fuga e não de fora pela absorção). Um pouco mais e o hard-core é um estrondo só, de explosão ou de desastre. Ir um mínimo além do hard é incendiar ou quebrar tudo em volta. O ódio hard está no limite dessas provocações: tudo pelos ares, destruição total, fim do mundo. O hard-core é um ritmo que se mede pelo mínimo de tempo possível em que se pode produzir uma música. Ele figura numa escala de aceleração segundo o tempo das músicas em contagem regressiva por subtração: hard-core (até 30 segundos), trash (até 18), laudfast (até 12).
No fanzine A Prensa, de JF, Vietnão me mostrou o "núcleo hardcore": uma circunferência negra, pequena e concentrada dentro de uma bem maior e branca, que são os punks. Na fIgura seguinte o núcleo negro se expandiu e tomou conta do espaço da outra circunferência, cobrindo todos os claros é o Movimento crescendo pela força do hard-core. Hardcore é esse ceme negro e irredutível que resiste enquanto tudo está branco em volta, e se alastra até enegrecer todo o resto. Vampiro tem um jaco com o símbolo hard-core na manga, cujo traço parece um desdobramento do "símbolo da paz", também uma insígnia hard-core. No símbolo hard-core se vê um H e um C. O símbolo da pàz é usado invertido - me diz Vietnã - significando "paz artificial". Ou então duas metralhadoras se cruzam sobre ele acompanhando o desenho, como na capa do disco dos Ratos de Porão (banda punk - SP).
Na extrema violência do visual e do som, os hard-core estão pedindo a paz. A banda Terveet Kadet da Finlândia aproveita esse símbolo retifIcando as , curvas do C para escrever "TK" (suas iniciais). Usa-se também "M H C" para indicar que se é hard-core. Como se denominam diretamente por vezes, embora seja raro, a denominação genérica émesmo "punk". Por essa época contudo, por volta de agosto de 84, ostentar esses símbolos e optar por esse som tornou-se muito expressivo e definidor mesmo de uma posição dentro do bando. Os "radicais" começaram a ficar mais juntos entre si no point e mais longe dos outros. Eram também Cláudio e Caverna. O Caverna estava usando agora um jaco que ele comprou do Vampiro e que tinha pintado nas costas:
MHC
ME TIREM DESSE INFERNO
"Me tirem..." é uma música do Olho Seco (SP). No grupo tão variado em cores e preferências, eles eram de uma gravidade de grandes pássaros, distantes e desconfiados. E era tão vivaz aquele seu segredo, juntos insistindo no som e no negro, que em alguns momentos eu esperava que talvez esse núcleo se espalhasse mesmo e afirmasse o Movimento, apesar das condições adversas. De toda forma, era preciso aguardar.
No sábado, 18 de agosto de 84, houve uma festa na casa do Satanésio, que ele e Maria organizaram. Na Rua do Riachuelo, uma porta alta, e dentro um corredor estreito e escuro longo que dá na sala e na cozinha, a casa se realiza bem no fundo, Numa época o Coquetel ensaiava lá no quarto do Satánas, uma das portas desse corredor frio. No dia da festa havia gente na calçada do lado de fora, mas só fui encontrar os hards nesse fundo da casa onde já rolava um som hard-core. Eles estavam encostados na parede em torno da sala, a um tempo coagidos e fazendo o cerco. Vietnam estava com um moicano aguçadíssimo, Vampiro e Nelson com o cabelo bastante arrepiado. Vietnam com o jaco cheio de bótons e um paninho "M H C" que ele tirava do coturno para o jaco, para a calça. Todos muito visuais, Nélson com a camisa preta com os nomes das bandas paulistas e o Vampiro com a camisa desbotada, várias impressões superpostas e, ilegível agora, denunciava um longo percurso de opiniões e preferências. Às vezes eles iam para o meio da sala e agitavam, e voltavam a seus postos, separados dos outros caras que circulavam pela casa. Ao estar com eles, senti que não podia estar com os outros, os hards estavam ali traçando mesmo um outro lugar. Então era isso: os punks são uns e os hards são outros, ou os punks são os hards e os outros já não são. Ou então não há mais punks. Como se o Movimento houvesse recuado para esse núcleo negro e resistente onde, talvez menos exposto às contaminações, envergava ainda o que têm sido as estratégias de seu exercício. Mas isso era possível, ainda? E como e em que momentos? Será que o Movimento Hard-Core seria por fim também neutralizado, ou o punk recobraria forças vindo agora do coração do subúrbio, do ceme resistente, radical, hard-core? O que aquele momento mostrava contudo - eu veria em seguida - não era essa alternativa da retomada ou do recuo definitivo, mas algo que não se oferecia assim de imediato, que era preciso conhecer mais, aguçar mais os sentidos para perceber.
O som hard é então interrompido para se ouvir um disco do Bauhaus - que era o som que agora se estava preferindo. Foi curioso vê-Ios apreciando um som mais fmo, sem agitar nada - ouvindo. Para os hards a festa havia tenninado. Mas às 10 e meia a festa acabou mesmo, por decisão da dona da éasa. À porta, era preciso dar um rumo àquela noite. E quase todos se preparavam então para ir ao Papagaio's. O grupo todo na calçada, na agitação de defmir os que vão, como e com quem. Kama e Yama estavam nessa festa. Soube depois que vpltaram para casa em seguida. Os hards a um canto da Riachuelo mal-iluminada. Decerto não iam ao Papagaio's. Seus planos era tentar chegar a um bar de que havíamos tido notícia no dia anterior no point: o Cactus, em Botafogo, onde se dizia que era possível levar fitas e dançar o próprio som. Em geral o punk quer isso. Nem pagar, nem consumir, chegar num lugar onde possa ouvir suas fitas, que é o único som de que eles gostam. Havia então claramente dois grupos, dois rumos diferentes, e aquele era o momento de as coisas se decidirem, ir ou não ir com quem. Quem ia para a danceteria já tinha planejado isso antes, esse' programa era agora habitual. Mas para mim foi mesmo uma escolha, porque durante o tempo todo da festa estive com os hards, ao mesmo tempo em que duas amigas, Rosaly e Margot, acompanhavam os outros à danceteria. Mas a coisa era muito simples: era tentar achar esse lugar novo, o Cactus, aonde as referências vindas por boatos poderiam ou não nos levar.
E nos levaram a umas ruas vagas e poeirentas onde ficamos andando. A chuva começou quando já procurávamos o número, enxaguando o sabão dos cabelos pontudos que no entanto se arrepiavam ainda mais. Eram Vampiro, Vietnam; Nélson, Alcatéia e Cláudio. Eu os via então juntos fora do point, pela primeira vez só eles, fonnando um outro bando entre si, e muito mais exuberantes, numa sorte de alegria sombria, graves e vivazes. Descobrimos que o número que nos haviam dado não existia, a rua acabava em silêncio - paramos na absoluta desorientação. A chuva tinha aumentado muito. Prosseguimos numa direção e fomos perguntando: a quem passasse (e eram poucos àquela hora ali) e no único bar aberto. Ninguém sabia desse lugar. Tomamos outra direção e procuramos mais, pensando que poderia ser o mesmo número numa rua próxima ou então na mesma rua mas do lado oposto, até começannos a considerar outros lugares para ir. Paramos sob uma marquise completamente inundados, depois continuamos, já em busca de qualquer outro lugar. A chuva mais fraca agora, caminhávamos conversando pelas ruas que não traziam mais nenhuma referência possível, em que não importava mais a numeração. Os nomes dos bares que assomavam como sugestão eram mera parte da conversa, ninguém queria ir a lugar nenhum. Não era como quando o bando inteiro caminhava, imenso pelo grande número e pela intensidade, assombrando pelo caminho. Mas agora, a irreverência silenciosa desses hards, pela rua e à noite e a esmo, afirmava não uma persistência nem uma retomada, mas uma insistência ilocalizável, contudo real e vislumbrada ali, subitamente atualizada, que deixava a-desejar, daria ainda o que pensar sobre o que desde o início tinha sido o estilo daquele bando. Aquele quase-nada apenas perceptível que produzia a intensidade e punha o bando a risco: em que se apostava a um tempo o seu desaparecimento e o seu exercício, e para mim também uma pista para compreendê-los.
Para o que eu procurava as palavras, a um tempo exatas e tão-só alusivas, o que me fazia percorrer as literaturas (das ciências sociais, da filosofia) à cata de um meio de não dizer, ou quase isso. Que não o discurso evasivo, nem o direto, que não nenhum truque lógico ou jeu de mots, nem recursos tipográficos, nem a retórica tortuosa, nem os virtuosismos neológicos - que aprisionam, eu pensava, nos circuitos previstos da idéia e da frase. Precisaria talvez desses conceitos anômalos em que no esforço da definição multiplicam-se as negativas, provocando uma margem imensa do que não é para dizer (não é isso, e não é isso, e nem isso). Não as tentativas repetidas que por aproximações sucessivas cercam um alvo. Mas a obliqüidade desejada, aí nessa afirmação vazada de nãos, ao enunciar o mínimo para livrar ao máximo o pensamento do jugo de refazer constantemente os binarismos, os circuitos viciados, evitando o que se arrasta na língua e que é a prisão do signo mesmo, que está no próprio ato de dizer. Projeto que nunca se realiza por completo, em que essa ameaça é um móvel que é preciso deslocar constantemente. À procura, portanto, menos dos autores que de momentos deles. Os momentos mais velozes de seu pensamento que, paradoxalmente, eram instantes de quase silêncio. Não o Bateson da esquimogênese, certo e triunfante, mas o instante (talvez mínimo e quase indiscemível em sua obra) de suspensão e sobressalto em que era preciso inventar outra coisa (o "steady state") para pensar a ilha de Bali.
Não o Lévi-Bruhl sem esperanças (como dizem) ao considerar o incognoscível das sociedades primitivas, mas ele em suas "promenades" pelo Bois ou Bagatelle, nos instantes em que a inquietude do corpo abrigava aquelas voltas do pensamento não como falha mas como afirmação; Clastres em sua celebração da linguagem, sempre que sua acuidade etnográfica e o uso sem culpa que faz do saber antropulógico me sugeriam a força do antropólogo que se distanciou nã'à porque viajou muito tempo, mas porque respeitou o que estudava em sua positividade enquanto seu pensamento também se fazia acontecimento, contra as categorias dominantes que viriam truncar seu exercício, assim também trabalhando para baldar o Estado, pensée sauvage. Na sociologia das gangues, esses momentos em que a força mesma do que se descrevia irrompia e escapava do que ainda se enunciava de dentro de um saber disciplinar. De Deleuze mesmo, o exercício de virar e revirar seus Mille Plateaux, tomá-Ios não como guia ou manual de conceitos, mas como engrenagens para a máquina-de-guerra que os punks, estar com os punks, pensar os punks, prepara. Os instantes de Lyotard em que ele repensou as ciências, e mesmo a construção do saber no Ocidente, em que notou e mostrou as fugas possíveis, falou das minorias, ocupou-se mesmo do feminiIío.
E esse debruçar-se sobre o sobressalto do pensador não é para enganá.J.o, nem porque alguns momentos sejam bons e outros maus - mas para que sua distração permita uma outra em que seja possível surpreender-se a todo instante, para que a proximidade com o pensamento seja constantemente. empurrada à frente, adiada em prol de um estranhamento. Em que a questão do antropólogo pesquisando em sua própria cidade se recoloca, apoiando-se em três níveis simultâneos: o funcionamento interno do pensamento, os problemas da escritura e a relação com a prática social concreta que se estuda. Nesse momento a questão de onde se está é irrelevante, trata-se de que nas fronteiras sempre mutantes desses níveis se trabalhe o silêncio, a pausa, a suspensão, ashesitações, as mudanças inesperadas - em qualquer região do social onde se esteja, é a penumbra do discurso, uma zona de indiscernibilidade em que o pensador já seja questão para o pensamento, até que a ciência quase se calasse. O que é muito difícil e jamais se fará o bastante.
E como isso já é um impasse da escritura, é demasiado longo falar do que se faz de um só gesto. Aquela noite terminou com as despedidas ainda sob a chuva. Foi curioso porque todos os lugares que pude pensar disponíveis por perto eram inviáveis. O que se passava ali era completamente indócil ao esquema comum dos bares, em nenhum caberia a irreverência dos hards. Não havia mais trem àquela hora, eles iam tentar um último ônibus. Os relâmpagos continuaram a noite inteira.
Embora bem defmido enquanto som, o punk pode ser trabalhado por desvios (em ângulos sempre agudos de, por exemplo, cinco graus), pode ser aproveitado por outros estilos de som que o transformam, pode ser assumido por uma banda como "influência" e pode ser visto no panorama do rock, mesmo que seja para ele o transtorno e a subversão. Mas não existe transição possível do hard-core. Ele não passa do que é e não serve para outra coisa senão para si mesmo. Ele não pode ser convertido ou adaptado porque o que usa para se fazer é tão horrível que inassimilável (como a abominação da suástica). Para os conversores não há ponto de inserção num corpo tão áspero (o grito, a exasperação, o barulho). Os centros de poder atêm-se aos impasses, engrossam os coágulos dos fluxos, transferem-nos para sua zona de potência e lá os reverberam: as mídias tomam os braceletes no que eles podem ter de pulseira, o negro no que ele pode ser elegante, o cabelo arrepiado no que ele pode compor um penteado (o que portanto já não é mais o punk), e os reproduzem para quem quiser comprar essa cópia de si. Do hard-core não há o que aproveitar, não hácomo domesticar tanto atrito. O perigo para o hard-core enquanto núcleo de resistência é menos ser absorvido do que provocar sua própria destruição. Porque nessa relação variável que a máquina-de-guerra tem com a guerra, pode-se dizer que ele está muito próximo de sua abolição. É mais fácil ele morrer por si mesmo, pelo extremo da linha de fuga. Quando ela vinga por um processo por demais violento, por uma desterritorialização "à la sauvage", o deslocamento abrupto é para ela mortal. O hard-core é como a suástica: sua violência é o que o toma inassimilável e portanto o salva e ao mesmo tempo o aproxima da absoluta autodestruição.
Um pouco mais e é o fim (um fim que vem pela própria fuga e não de fora pela absorção). Um pouco mais e o hard-core é um estrondo só, de explosão ou de desastre. Ir um mínimo além do hard é incendiar ou quebrar tudo em volta. O ódio hard está no limite dessas provocações: tudo pelos ares, destruição total, fim do mundo. O hard-core é um ritmo que se mede pelo mínimo de tempo possível em que se pode produzir uma música. Ele figura numa escala de aceleração segundo o tempo das músicas em contagem regressiva por subtração: hard-core (até 30 segundos), trash (até 18), laudfast (até 12).
No fanzine A Prensa, de JF, Vietnão me mostrou o "núcleo hardcore": uma circunferência negra, pequena e concentrada dentro de uma bem maior e branca, que são os punks. Na fIgura seguinte o núcleo negro se expandiu e tomou conta do espaço da outra circunferência, cobrindo todos os claros é o Movimento crescendo pela força do hard-core. Hardcore é esse ceme negro e irredutível que resiste enquanto tudo está branco em volta, e se alastra até enegrecer todo o resto. Vampiro tem um jaco com o símbolo hard-core na manga, cujo traço parece um desdobramento do "símbolo da paz", também uma insígnia hard-core. No símbolo hard-core se vê um H e um C. O símbolo da pàz é usado invertido - me diz Vietnã - significando "paz artificial". Ou então duas metralhadoras se cruzam sobre ele acompanhando o desenho, como na capa do disco dos Ratos de Porão (banda punk - SP).
Na extrema violência do visual e do som, os hard-core estão pedindo a paz. A banda Terveet Kadet da Finlândia aproveita esse símbolo retifIcando as , curvas do C para escrever "TK" (suas iniciais). Usa-se também "M H C" para indicar que se é hard-core. Como se denominam diretamente por vezes, embora seja raro, a denominação genérica émesmo "punk". Por essa época contudo, por volta de agosto de 84, ostentar esses símbolos e optar por esse som tornou-se muito expressivo e definidor mesmo de uma posição dentro do bando. Os "radicais" começaram a ficar mais juntos entre si no point e mais longe dos outros. Eram também Cláudio e Caverna. O Caverna estava usando agora um jaco que ele comprou do Vampiro e que tinha pintado nas costas:
MHC
ME TIREM DESSE INFERNO
"Me tirem..." é uma música do Olho Seco (SP). No grupo tão variado em cores e preferências, eles eram de uma gravidade de grandes pássaros, distantes e desconfiados. E era tão vivaz aquele seu segredo, juntos insistindo no som e no negro, que em alguns momentos eu esperava que talvez esse núcleo se espalhasse mesmo e afirmasse o Movimento, apesar das condições adversas. De toda forma, era preciso aguardar.
No sábado, 18 de agosto de 84, houve uma festa na casa do Satanésio, que ele e Maria organizaram. Na Rua do Riachuelo, uma porta alta, e dentro um corredor estreito e escuro longo que dá na sala e na cozinha, a casa se realiza bem no fundo, Numa época o Coquetel ensaiava lá no quarto do Satánas, uma das portas desse corredor frio. No dia da festa havia gente na calçada do lado de fora, mas só fui encontrar os hards nesse fundo da casa onde já rolava um som hard-core. Eles estavam encostados na parede em torno da sala, a um tempo coagidos e fazendo o cerco. Vietnam estava com um moicano aguçadíssimo, Vampiro e Nelson com o cabelo bastante arrepiado. Vietnam com o jaco cheio de bótons e um paninho "M H C" que ele tirava do coturno para o jaco, para a calça. Todos muito visuais, Nélson com a camisa preta com os nomes das bandas paulistas e o Vampiro com a camisa desbotada, várias impressões superpostas e, ilegível agora, denunciava um longo percurso de opiniões e preferências. Às vezes eles iam para o meio da sala e agitavam, e voltavam a seus postos, separados dos outros caras que circulavam pela casa. Ao estar com eles, senti que não podia estar com os outros, os hards estavam ali traçando mesmo um outro lugar. Então era isso: os punks são uns e os hards são outros, ou os punks são os hards e os outros já não são. Ou então não há mais punks. Como se o Movimento houvesse recuado para esse núcleo negro e resistente onde, talvez menos exposto às contaminações, envergava ainda o que têm sido as estratégias de seu exercício. Mas isso era possível, ainda? E como e em que momentos? Será que o Movimento Hard-Core seria por fim também neutralizado, ou o punk recobraria forças vindo agora do coração do subúrbio, do ceme resistente, radical, hard-core? O que aquele momento mostrava contudo - eu veria em seguida - não era essa alternativa da retomada ou do recuo definitivo, mas algo que não se oferecia assim de imediato, que era preciso conhecer mais, aguçar mais os sentidos para perceber.
O som hard é então interrompido para se ouvir um disco do Bauhaus - que era o som que agora se estava preferindo. Foi curioso vê-Ios apreciando um som mais fmo, sem agitar nada - ouvindo. Para os hards a festa havia tenninado. Mas às 10 e meia a festa acabou mesmo, por decisão da dona da éasa. À porta, era preciso dar um rumo àquela noite. E quase todos se preparavam então para ir ao Papagaio's. O grupo todo na calçada, na agitação de defmir os que vão, como e com quem. Kama e Yama estavam nessa festa. Soube depois que vpltaram para casa em seguida. Os hards a um canto da Riachuelo mal-iluminada. Decerto não iam ao Papagaio's. Seus planos era tentar chegar a um bar de que havíamos tido notícia no dia anterior no point: o Cactus, em Botafogo, onde se dizia que era possível levar fitas e dançar o próprio som. Em geral o punk quer isso. Nem pagar, nem consumir, chegar num lugar onde possa ouvir suas fitas, que é o único som de que eles gostam. Havia então claramente dois grupos, dois rumos diferentes, e aquele era o momento de as coisas se decidirem, ir ou não ir com quem. Quem ia para a danceteria já tinha planejado isso antes, esse' programa era agora habitual. Mas para mim foi mesmo uma escolha, porque durante o tempo todo da festa estive com os hards, ao mesmo tempo em que duas amigas, Rosaly e Margot, acompanhavam os outros à danceteria. Mas a coisa era muito simples: era tentar achar esse lugar novo, o Cactus, aonde as referências vindas por boatos poderiam ou não nos levar.
E nos levaram a umas ruas vagas e poeirentas onde ficamos andando. A chuva começou quando já procurávamos o número, enxaguando o sabão dos cabelos pontudos que no entanto se arrepiavam ainda mais. Eram Vampiro, Vietnam; Nélson, Alcatéia e Cláudio. Eu os via então juntos fora do point, pela primeira vez só eles, fonnando um outro bando entre si, e muito mais exuberantes, numa sorte de alegria sombria, graves e vivazes. Descobrimos que o número que nos haviam dado não existia, a rua acabava em silêncio - paramos na absoluta desorientação. A chuva tinha aumentado muito. Prosseguimos numa direção e fomos perguntando: a quem passasse (e eram poucos àquela hora ali) e no único bar aberto. Ninguém sabia desse lugar. Tomamos outra direção e procuramos mais, pensando que poderia ser o mesmo número numa rua próxima ou então na mesma rua mas do lado oposto, até começannos a considerar outros lugares para ir. Paramos sob uma marquise completamente inundados, depois continuamos, já em busca de qualquer outro lugar. A chuva mais fraca agora, caminhávamos conversando pelas ruas que não traziam mais nenhuma referência possível, em que não importava mais a numeração. Os nomes dos bares que assomavam como sugestão eram mera parte da conversa, ninguém queria ir a lugar nenhum. Não era como quando o bando inteiro caminhava, imenso pelo grande número e pela intensidade, assombrando pelo caminho. Mas agora, a irreverência silenciosa desses hards, pela rua e à noite e a esmo, afirmava não uma persistência nem uma retomada, mas uma insistência ilocalizável, contudo real e vislumbrada ali, subitamente atualizada, que deixava a-desejar, daria ainda o que pensar sobre o que desde o início tinha sido o estilo daquele bando. Aquele quase-nada apenas perceptível que produzia a intensidade e punha o bando a risco: em que se apostava a um tempo o seu desaparecimento e o seu exercício, e para mim também uma pista para compreendê-los.
Para o que eu procurava as palavras, a um tempo exatas e tão-só alusivas, o que me fazia percorrer as literaturas (das ciências sociais, da filosofia) à cata de um meio de não dizer, ou quase isso. Que não o discurso evasivo, nem o direto, que não nenhum truque lógico ou jeu de mots, nem recursos tipográficos, nem a retórica tortuosa, nem os virtuosismos neológicos - que aprisionam, eu pensava, nos circuitos previstos da idéia e da frase. Precisaria talvez desses conceitos anômalos em que no esforço da definição multiplicam-se as negativas, provocando uma margem imensa do que não é para dizer (não é isso, e não é isso, e nem isso). Não as tentativas repetidas que por aproximações sucessivas cercam um alvo. Mas a obliqüidade desejada, aí nessa afirmação vazada de nãos, ao enunciar o mínimo para livrar ao máximo o pensamento do jugo de refazer constantemente os binarismos, os circuitos viciados, evitando o que se arrasta na língua e que é a prisão do signo mesmo, que está no próprio ato de dizer. Projeto que nunca se realiza por completo, em que essa ameaça é um móvel que é preciso deslocar constantemente. À procura, portanto, menos dos autores que de momentos deles. Os momentos mais velozes de seu pensamento que, paradoxalmente, eram instantes de quase silêncio. Não o Bateson da esquimogênese, certo e triunfante, mas o instante (talvez mínimo e quase indiscemível em sua obra) de suspensão e sobressalto em que era preciso inventar outra coisa (o "steady state") para pensar a ilha de Bali.
Não o Lévi-Bruhl sem esperanças (como dizem) ao considerar o incognoscível das sociedades primitivas, mas ele em suas "promenades" pelo Bois ou Bagatelle, nos instantes em que a inquietude do corpo abrigava aquelas voltas do pensamento não como falha mas como afirmação; Clastres em sua celebração da linguagem, sempre que sua acuidade etnográfica e o uso sem culpa que faz do saber antropulógico me sugeriam a força do antropólogo que se distanciou nã'à porque viajou muito tempo, mas porque respeitou o que estudava em sua positividade enquanto seu pensamento também se fazia acontecimento, contra as categorias dominantes que viriam truncar seu exercício, assim também trabalhando para baldar o Estado, pensée sauvage. Na sociologia das gangues, esses momentos em que a força mesma do que se descrevia irrompia e escapava do que ainda se enunciava de dentro de um saber disciplinar. De Deleuze mesmo, o exercício de virar e revirar seus Mille Plateaux, tomá-Ios não como guia ou manual de conceitos, mas como engrenagens para a máquina-de-guerra que os punks, estar com os punks, pensar os punks, prepara. Os instantes de Lyotard em que ele repensou as ciências, e mesmo a construção do saber no Ocidente, em que notou e mostrou as fugas possíveis, falou das minorias, ocupou-se mesmo do feminiIío.
E esse debruçar-se sobre o sobressalto do pensador não é para enganá.J.o, nem porque alguns momentos sejam bons e outros maus - mas para que sua distração permita uma outra em que seja possível surpreender-se a todo instante, para que a proximidade com o pensamento seja constantemente. empurrada à frente, adiada em prol de um estranhamento. Em que a questão do antropólogo pesquisando em sua própria cidade se recoloca, apoiando-se em três níveis simultâneos: o funcionamento interno do pensamento, os problemas da escritura e a relação com a prática social concreta que se estuda. Nesse momento a questão de onde se está é irrelevante, trata-se de que nas fronteiras sempre mutantes desses níveis se trabalhe o silêncio, a pausa, a suspensão, ashesitações, as mudanças inesperadas - em qualquer região do social onde se esteja, é a penumbra do discurso, uma zona de indiscernibilidade em que o pensador já seja questão para o pensamento, até que a ciência quase se calasse. O que é muito difícil e jamais se fará o bastante.
E como isso já é um impasse da escritura, é demasiado longo falar do que se faz de um só gesto. Aquela noite terminou com as despedidas ainda sob a chuva. Foi curioso porque todos os lugares que pude pensar disponíveis por perto eram inviáveis. O que se passava ali era completamente indócil ao esquema comum dos bares, em nenhum caberia a irreverência dos hards. Não havia mais trem àquela hora, eles iam tentar um último ônibus. Os relâmpagos continuaram a noite inteira.
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